
No fragmento do poema retirado da obra Morte e Vida Severina do escritor João Cabral de Mello Neto, Severino, retirante, na sua enfadonha caminhada rumo ao Recife, acompanha um enterro e escuta o discurso feito pelos amigos do morto ao chegarem ao cemitério. Tal discurso nos apresenta a imagem de um homem pobre, nordestino, que durante sua vida foi obrigado a trabalhar em terras alheias em condições precárias para garantir sua sobrevivência. A situação é um retrato da vida de milhares de homens pobres que têm sua mão-de-obra explorada de forma indiscriminada, além de manterem com seus senhores de terras relações de favor, mando e obediência, uma das razões para isso é o fato deles não possuírem os próprios meios à sua subsistência a fim de poderem viver de forma digna. O texto é, sobretudo, uma crítica a má distribuição de terras e denúncia das condições precárias pelas quais passam parte da população brasileira alijada de possuir um bem que todos deveriam ter acesso: a terra.
- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
- é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
- Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
- é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
- é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
- é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
- Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
- Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
- Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
- Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
- Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
- Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
- Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
- Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
- Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
- Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
- Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
- Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.
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