3 de mai. de 2009

Introspecto

Eu só quero estar
Sem pensar no desenrolar.
Não devo completar
Apenas olhar,
Deliciar.
No meu divã interno
Um tanto eterno
Por se ver esquecido
Grita,
Ao ver-se despido.
Eu sinto o acaso
Fazer de mim descaso
E ao ver meu embaraço
Num passo
Me desfaço.

19 de abr. de 2009

Estranhar e perder-se

Posso dizer que hoje uma sensação estranha toma conta de mim. Não sei se ‘estranha’ seria o termo adequado, poderia dizer também que é algo novo, um prazer inédito.

É o momento de olhar através do meu invólucro, perceber a que fim todo o meu ser se projeta, ir ao templo das adoráveis musas. Musas antes esquecidas, vista apenas como um grande ornamento, sem um sentido ímpar, sem sequer carregar consigo algum sentido. Foi um tormento perceber que elas estavam ali intocadas.

Quis trazê-las pelas mãos e naufragar com firmeza nas emoções diárias, tolas, vãs... Observei tudo a minha volta, busquei a doce alegria daquelas sensações e prazeres; sai dali como uma criança que nasce à descoberta do mundo, onde o pasmo é essencial e as cores se apresentam num palco sem disfarces.

2 de abr. de 2009

Poema da dúvida

Seria inútil mostrar-se?
Seria preciso calar-se?
Seria inútil sentir?
Seria preciso mentir?
Seria inútil falar?
Seria preciso abafar?
Seria preciso saber se ainda há o que falar.

Inconstâncias...


Sobrevivo a inconstantes causas, desejos e mentes. Não aprendi ainda a lhe dá com todas elas, por isso meu coração torna-se pequeno e impotente. Vago por entre as palavras ditas, teorias e idéias que me escapam pelos dedos... Ainda persiste em mim um desejo insolúvel pela compreensão. Entender: eis a questão! É uma sede insaciável e assim levo minha mente inquieta às confusões e descobertas.

31 de mar. de 2009

A plena negação do kitsch

Uns dez anos mais tarde (ela já morava na América), um senador americano amigo de seus amigos levou-a a passear em seu enorme automóvel. Quatro garotos estavam sentados no banco de trás. O senador parou; as crianças saíram e começaram a correr num gramado imenso, em direção a um estádio onde havia uma pista de patinação no gelo. O senador ficou ao volante olhando com ar sonhador as quatro pequenas silhuetas que corriam; virou se para Sabina: Olhe para eles!disse, fazendo com a mão um gesto amplo que abrangia o estádio, o gramado e as crianças. É isso que eu chamo de felicidade.

Essas palavras não eram apenas uma expressão de alegria diante das crianças que corriam e da grama que crescia, era também uma manifestação de compreensão em relação a uma mulher que vinha de um país comunista em que o senador estava convencido a grama não cresce e as crianças não correm. Nesse momento, Sabina imaginou o mesmo senador no palanque de uma Praça de Praga. Em seu rosto havia exatamente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas, do alto de seus palanques, dirigiam aos cidadãos igualmente sorridentes, que desfilavam a seus pés.

Como podia este senador saber que crianças significavam felicidade? Enxergaria dentro de suas almas? E se três dessas crianças, quando saíssem de seu campo visual, se atirassem sobre a quarta, esmurrando-a?

O senador tinha apenas um argumento a favor de sua afirmação: a sensibilidade. Quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do kitsch, impera a ditadura do coração. E preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Portanto, o kitsch não se interessa pelo insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na grama, a pátria traida, a lembrança do primeiro amor.

O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção.
A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no
gramado!
A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto
com toda a humanidade, diante de crianças correndo no
gramado!
Somente essa segunda lágrima faz com que o kitsch seja o
kitsch.
A fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra
base senão o kitsch.

Ninguém sabe disso melhor do que os políticos. Assim que percebem uma máquina fotográfica nas proximidades, correm para a primeira criança que vêem para levantá-la nos braços e beijá-la no rosto. O kitsch é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos.

Numa sociedade em que coexistem várias correntes políticas e em que suas influências se anulam ou se limitam mutuamente, é possível escapar da inquisição do kitsch; o indivíduo pode proteger sua originalidade e o artista pode criar obras inesperadas. Mas nos lugares em que um só partido detém todo o poder, somos envolvidos sem escapatória pelo reino do kitsch totalitário.

Se digo totalitário é porque, nesse caso, tudo aquilo que ameaça o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (toda discordância é uma cusparada no rosto sorridente da fraternidade), todo ceticismo (quem começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), e também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres, ameaçando assim o sacrossanto amai-vos e multiplicai-vos . Sob esse ponto de vista, aquilo a que chamamos ‘gulag’ pode ser considerado como uma fossa sanitária em que o kitsch totalitário joga seus detritos.

Trechos retirados da Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera

10 de mar. de 2009

A implosão de mentira - Afonso Romano de Sant'Anna

Mentiram-me. Mentiram-me ontem
E hoje mentem novamente. Mentem
De corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
Mentem. Mentem tão nacional/mente
Que acham que mentindo história afora
Vão enganar a morte eterna/mente

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
Falam. E desfilam de tal modo nuas
E mesmo um cego pode ver
A verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
E para alguns é cara e escura.
Mas não chega à verdade
Pela mentira, nem à democracia
Pela ditadura.

Evidente/ mente a crer
Nos que me mentem
Uma flor nasceu em Hiroshima
E em Auscwitz havia um circo
Permanente.

Mentem. Mentem caricatual
Mente:

Mentem como a careca
Mente ao pente,
Mentem como a dentadura
Mente ao dente,
Mentem como a carroça
À besta em frente,
Mentem como a doença
Ao doente,
Mentem clara/mente
Como o espelho transparente.

Mentem deslavada/mente,
Como nenhuma lavadeira mente
Ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
Com a cara limpa e nas mãos
O sangue quente. Mentem
Ardente/mente como um doente
Nos seus instantes de febre. Mentem
Fabulosa/mente como o caçador que quer passar
Gato por lebre. E nessa trilha de mentira
A caça é que caça o caçador
Com armadilha.

E assim cada qual
Mente industrial? Mente,
Mente partidária? Mente,
Mente incivil? Mente,
Mente tropical? Mente,
Mente incontinente? Mente,
Mente hereditária? Mente,
Mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/ mente
Constroem um país
De mentira
diária/mente.

8 de mar. de 2009

Frenesi colorida

Em meio às cores da realidade, ainda permaneço nas cinzas, talvez enquanto sombra que só acompanha o representar e desenrolar das cores. Atribuo a cada uma delas um valor indecifrável, uma singularidade em cada uma de suas expressões, embora algumas delas queiram imitar o brilho da outra.


Não à toa, pois já chegaram a criar algumas conversões em que se atribuía valor maior a algumas delas, tolice! Não há nada mais belo que a manifestação de cada uma delas, por vozes, gritos e até pelo ruído de seus pares. É o que acompanho no caminho de ida e volta pra casa: as formas, corpos, faces, linhas, retas... Enfim, o emaranhado de cores e desenhos que sigo freneticamente enquanto passo nas ruas. Nas cinzas observo; perpasso pelas cenas, pelos objetos, até pelas sombras...


O sentimento de não ser qualquer uma dessas cores é o que me esvaece. Ponho-me nas suas representações, porém sinto-me desgarrada em seu meio, mesmo que o desejo seja de encontrar-me ali de algum modo.