31 de mar. de 2009

A plena negação do kitsch

Uns dez anos mais tarde (ela já morava na América), um senador americano amigo de seus amigos levou-a a passear em seu enorme automóvel. Quatro garotos estavam sentados no banco de trás. O senador parou; as crianças saíram e começaram a correr num gramado imenso, em direção a um estádio onde havia uma pista de patinação no gelo. O senador ficou ao volante olhando com ar sonhador as quatro pequenas silhuetas que corriam; virou se para Sabina: Olhe para eles!disse, fazendo com a mão um gesto amplo que abrangia o estádio, o gramado e as crianças. É isso que eu chamo de felicidade.

Essas palavras não eram apenas uma expressão de alegria diante das crianças que corriam e da grama que crescia, era também uma manifestação de compreensão em relação a uma mulher que vinha de um país comunista em que o senador estava convencido a grama não cresce e as crianças não correm. Nesse momento, Sabina imaginou o mesmo senador no palanque de uma Praça de Praga. Em seu rosto havia exatamente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas, do alto de seus palanques, dirigiam aos cidadãos igualmente sorridentes, que desfilavam a seus pés.

Como podia este senador saber que crianças significavam felicidade? Enxergaria dentro de suas almas? E se três dessas crianças, quando saíssem de seu campo visual, se atirassem sobre a quarta, esmurrando-a?

O senador tinha apenas um argumento a favor de sua afirmação: a sensibilidade. Quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do kitsch, impera a ditadura do coração. E preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Portanto, o kitsch não se interessa pelo insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na grama, a pátria traida, a lembrança do primeiro amor.

O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção.
A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no
gramado!
A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto
com toda a humanidade, diante de crianças correndo no
gramado!
Somente essa segunda lágrima faz com que o kitsch seja o
kitsch.
A fraternidade entre todos os homens não poderá nunca ter outra
base senão o kitsch.

Ninguém sabe disso melhor do que os políticos. Assim que percebem uma máquina fotográfica nas proximidades, correm para a primeira criança que vêem para levantá-la nos braços e beijá-la no rosto. O kitsch é o ideal estético de todos os homens políticos, de todos os partidos e movimentos políticos.

Numa sociedade em que coexistem várias correntes políticas e em que suas influências se anulam ou se limitam mutuamente, é possível escapar da inquisição do kitsch; o indivíduo pode proteger sua originalidade e o artista pode criar obras inesperadas. Mas nos lugares em que um só partido detém todo o poder, somos envolvidos sem escapatória pelo reino do kitsch totalitário.

Se digo totalitário é porque, nesse caso, tudo aquilo que ameaça o kitsch é banido da vida: toda manifestação de individualismo (toda discordância é uma cusparada no rosto sorridente da fraternidade), todo ceticismo (quem começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério), e também a mãe que abandona a família ou o homem que prefere os homens às mulheres, ameaçando assim o sacrossanto amai-vos e multiplicai-vos . Sob esse ponto de vista, aquilo a que chamamos ‘gulag’ pode ser considerado como uma fossa sanitária em que o kitsch totalitário joga seus detritos.

Trechos retirados da Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera

Um comentário:

  1. O lendário Milan Kundera em um dos melhores trechos de sua obra de arte. É sempre bom falar da Insustentável Leveza do Ser e de sua imortal filosofia e indagações.

    Belo post!

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